A Realeza dos Contos

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Por Marcio Uno

Olhava para o relógio cuco que estava pendurado perto da janela. Sentado na poltrona enxovalhada a localização era perfeita. Ao mesmo tempo que avistava os ponteiros vagarosos, tinha a ampla visão da estrada que levava aos portões do sítio. Espaços de alívio se sobrepunham diante de tamanha ansiedade com a pequena sensação de controle.

Sabia que aqueles momentos eram preciosos, únicos. Coroa nenhuma pagaria. Com o “dolce far niente” aprendeu a se entregar na trégua do tempo e se deleitar com os recessos escolares dos netos. A hipnose onomatopeica ditava o transe: cloc, cloc, cloc….cuco, cuco!!!

Já estava em outra dimensão. Virando para a extensa biblioteca, qual seria o conto que abrigaria palácio nas almas? Pensou nas narrativas cotidianas, dentre erros e acertos da vida. Lembrou de uma relíquia dentre todas que possuía. Na caixa empoeirada, algumas lembranças, álbuns de fotos e seus escritos guardados por décadas.

Tal tesouro foi reunido há dois anos quando tinha sofrido uma grave doença. Achando que ali terminaria sua trajetória, montou um caleidoscópio que remontaria a variedade de momentos e reflexões guardados na memória, esta que já dava sinais de pequenos e alvos lapsos.

– Hoje serei Sherazade… – balbuciou com orgulho.

Foi o tempo de pegar o baú da vida e sentar-se que avistou o automóvel cortando as imagens das árvores pela estrada real e chegando ao destino final. Gritou com tanta felicidade: – Espelho, espelho meuuuuuuu!!! A velha cochilava na rede da varanda naquela tarde fresca de outono.

– Vai pro fundo do fosso!!! – Dizia ela assustada diante dos berros.

Com o coração alegre e acelerado a senhora foi recebê-los. Somente um grande abraço de vó para abrigar dois netos de uma só vez. Com passos em lentidão, o senhor abriu a porta e foi ao encontro das crianças. Os quatro saudaram de longe a mulher que adentrava ao carro.

Juntos, a entrada foi triunfal na fortaleza. Como se fosse a primeira vez, os pupilos tateavam os objetos e puxavam da memória as transformações ocorridas na sala desde a última visita ao casal. 

Eufóricos, olhavam para a suntuosa estante e, tentando descobrir qual seria a história da vez, logo perguntaram a majestade se tinham acertados os palpites. As férias, como de costume, tinham o rito inicial. Todavia, aquele momento fugiria dos roteiros literários.

Pegou o que tinha separado e deixado em cima do aparador quando se levantou e saiu para recepcioná-los. Mostrou uma capa antiga e mofada com imagens divididas entre sol e nuvens, castelo e casebre, cores vivas e foscas, montanhas e vales. Os pequenos ficaram por alguns segundos confusos.

O velho deu uma espontânea gargalhada. Bobos da corte?

Vendo a obra em mãos, a companheira deu-lhe uma piscada e foi para o quarto de hóspede guardar as malas dos viajantes. Os sábios em sintonia: é chegada hora!!! E desta vez a história não se passava diante de mundos distantes e figuras de linguagens, mas agora era real. A realeza dos contos se encontra nas mensagens ou nos personagens?

Afinal, tinha um lema na vida: morreria em paz educando filhos e netos a serem pessoas melhores que ele. Ambos sentaram ao seu lado e com a voz embargada pôs-se a dizer: “Há muitos anos atrás…”

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