À Posteridade, Uma Carta Pandêmica

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Por Marcio Uno

“Insan” é como a antiga sabedoria árabe define o homem, ou seja, “aquele que se esquece”

Urge o manuscrito. Seria para menos? Após dois anos do início da maior pandemia do século XXI – se é que teremos outras por vir – escrevo. Aos críticos atuais, embora considerem o texto tardio, pergaminho uma carta para futuros descendentes. Se perdi a esperança? Com o pequeno fagulho que reluz, se a voz rouca e tímida servir de metanoia aos poucos exegetas, pertinente será.

Voltarei ao presente, mas permita-me regredir no tempo. A humanidade perpassou por várias ocasiões do tipo, seja com a peste bubônica no século XIV que dizimou cerca de 1/3 da Europa; a varredura de aproximadamente 80 % da população indígena pelas doenças trazidas ao continente americano durante a expansão iniciada pelas “Grandes Navegações” – entre os séculos XVI e XIX; ou a gripe equivocadamente denominada “espanhola” que há um século matou entre 50 a 100 milhões de pessoas.

Até o presente momento, a pandemia do novo coronavírus, também denominado de COVID-19 ou Sars-CoV-2, ceifou quase 6 milhões de habitantes. Só no Brasil foram 623 mil mortos. Iniciada provavelmente na China, precisaria de somente 2 meses para alcançar todos os continentes e espalhar o caos por todo mundo. O mundo globalizado e integrado teve de fechar fronteiras, aeroportos, escolas, bares, teatros, etc. A profecia de Raul se cumpriu: “O dia em que a terra parou!!!” fez eco pelo planeta.

Até entender o ciclo da doença e sua propagação, de como orientar as pessoas, preparar o sistema de saúde e avançar nos estudos científicos, muitas empresas faliram, hospitais e necrotérios foram sobrecarregados, milhares de valas teriam de ser abertas para abrigar os corpos e, alguns padeciam de embolia pulmonar, tromboses e infecções generalizadas nos seus próprios lares pela dificuldade de atendimento e vagas nos estabelecimentos de saúde.

A esperança surgiria com o uso da internet: as orientações se propagariam em maior velocidade à população. Entretanto, nem tudo seriam flores: as notícias falsas circulariam igual ou até mais ligeiras que o atual coronavírus. Aliás, criamos um micro-organismo tão letal quanto o pandêmico. A modernidade fundiu os fatos com as opiniões.

Se no início da pandemia tivemos fé que a humanidade seria mais fraterna, unida e solidária, na verdade vimos que o período só revelaria o que há de mais horrível e de mais incrível no ser humano. É na tragédia em que se despe o caráter.

Tomemos a gripe espanhola como exemplo. À luz contemporânea, segue os absurdos disseminados por veículos de informações e distribuídos por autoridades como promessas de cura: fumo-de-rolo, cigarros, charutos, a famosa “caipirinha”, caldo de galinha, ovos e limões, quinino (molécula parecida com a cloroquina). Mudou o conteúdo ou somente o endereço e a rapidez da disseminação? E as frases estampadas: “As providências do governo de muito pouco valeram até agora”, “Continuamos entregues à divina providência”…

Tudo bem, justiça seja feita: a ciência era uma criança, a educação limitada, a estrutura sanitária e de saúde precárias, a penicilina nem sequer existia. E, ainda por cima, o mundo enfrentava uma guerra mundial. Os poucos que se insurgiam contra tais aberrações eram “João Batistas” pregando no deserto.

Assim como na crise sanitária de 1918, usamos métodos de isolamento social, uso de máscaras e a limpeza das mãos. Se aprendemos algo com a história…Bem, a ciência deu grandes passos de evolução de lá em diante. Quanto à sociedade, o obscurantismo, a perversidade e o egocentrismo tentaram novamente abafar as consciências esclarecidas e empáticas com a vida.

Vimos desvios de verbas públicas para aquisições de respiradores e materiais hospitalares; aglomerações de pessoas em festas, bares e confraternizações enquanto hospitais e cemitérios estavam abarrotados; a compra de vacinas antecipadas para que indivíduos pudessem furar a fila; o desdém pelo uso de máscaras e de limpeza das mãos; profissionais que aplicavam vacina de vento para vender os imunizantes; o abuso no valor da venda de produtos essenciais tais como álcool em gel e protetores faciais; contratos irregulares que pediriam propinas de 1 dólar por dose de vacina; autoridades quererem a marra mudar bula de remédios ineficazes para distribuir à população; a falta de oxigênio que gerou mortes de pacientes pela ausência de gestão…Exemplos não faltam.

Ainda, com todo o aparato científico, cultural e informativo que se existe hoje, alguns líderes políticos, religiosos, charlatões, curandeiros, pseudocientistas e médicos aproveitam de tal posição para disseminar em redes sociais e outros meios informativos as mais diversas bizarrices e teorias da conspiração: “o vírus foi criado em laboratório”; “é só uma gripezinha”; “vai matar umas 2 mil pessoas só”; “em local quente o bicho não se prolifera”; “olha toma luz solar e desinfetante que sara”; “o kit-covid, – já comprovado sua ineficácia – também chamado de tratamento precoce, é o salvador da pátria”; “tenho a receita eficaz: a semente de feijão, o óleo consagrado e o coco que cura o coronavírus”; “beber vodca ou uísque protege do vírus”; “a vacina tem um chip que irá controlar o planeta”; “quem tomar vacina virará jacaré ou bambi”; “a vacina pode desenvolver o HIV no indivíduo”; “a vacina provoca AVC e infartos”…Procurem as referências e saberão quem são seus remetentes.

Mais absurdo é saber que ainda seguidores dos perversos reverberam tais mantras mesmo após serem desmistificadas as estupidezes. Entendo que no desespero agarramos o mundo, mas a ignorância e maldades têm limites.

E por falar em vacina…Grupos contrários aos imunizantes se espalham pelo globo. No Brasil, as campanhas de vacinação massivas criadas há 50 anos atrás e que foram muito bem executadas por décadas tem perdido força em meio às desinformações e, com a cobertura vacinal em queda, doenças erradicadas no país começam a surgir novamente tais como surtos de sarampo. Os argumentos desses grupos questionam a eficácia das vacinas, a perda da liberdade individual e de que os imunizantes produzem outros problemas de saúde às pessoas.

Embora o médico criador do movimento, Andrew Wakefield, ter sido desmascarado pela farsa de dados e de informações constantes no artigo científico que relacionava a vacina com o desenvolvimento do autismo e publicado em 1998 pela The Lancet – posteriormente retratado pela revista -, o estrago estava feito e, alguns, até hoje propagam equivocados conteúdos.

Nenhum direito é absoluto e pleno. Em alguns momentos, os direitos e deveres coletivos se sobrepõe aos individuais. Ainda mais quando se envolve a saúde pública diante de uma pandemia. O ato de se vacinar não tem cunho meramente pessoal. É uma ação que envolve a coletividade. Os imunizantes também não são os salvadores da pátria ou a bala de prata esperada, porém foram comprovados cientificamente que reduzem as chances de internações dos indivíduos e de contraírem a doença de forma mais gravosa que possa acarretar mortes.

Entretanto, presenciamos na pandemia também muitos atos divinos: os céus abertos e lindos com a diminuição da poluição; profissionais que doaram suas vidas e seu trabalho para o outro tais como os médicos e enfermeiros, os motoboys e coveiros; a ciência que rapidamente sequenciou os genes, estudou o comportamento viral e produziu vacinas eficazes; os jovens que fizeram compras para os vizinhos mais idosos; voluntários que emprestaram seus ouvidos às pessoas desesperadas e enlutadas; doações de alimentos distribuídos aos mais necessitados e aos desempregados e de equipamentos, materiais e insumos hospitalares aos sistemas de saúde.

Enfim, na roda dos descendentes e com tantas prosas proferidas, quando me perguntarem sobre este momento, quero parafrasear tais palavras. E chegando a noite em que o lapso reinar, balbuciarei tal epístola.

Quanto ao posicionamento que tomei, esclarecerei sem nenhuma vergonha: que a hipocondria e fobia não me fez morada, porém preferi errar o alvo com os excessos da prudente consciência do que com as balas do negacionismo, da perversidade e da omissão. Descanso no colo do tempo, o senhor da razão. E, se o peso do pecado da exorbitância me acompanhar, a humildade no bolso quero carregar.

Caminho para o futuro. Torço que as letras sejam pertinentes no horizonte adiante. Deixo à posteridade uma carta pandêmica e rogo que chegando lá ainda não seja polêmica.

Aliás…

No parque de diversões, esbravejo aos céus: – Quem sou eu por favor???

Sopra o vento sarcástico sobre mim: – “Insan”, tu és “Insan”!!!

Insano? Entro na roda-gigante e sigo adiante…

8 comentários sobre “À Posteridade, Uma Carta Pandêmica

  1. Débora Possebon da Silva

    Amor da minha vida, a humanidade precisa aprender a ser humano primeiramente: ter empatia, a se importar com o próximo, ter amor e acreditar na ciência.Não aprendemos nada, após duas grandes guerras, milhares de anos de guerras civis, desigualdade e pestes. Após 100 anos da última grande pandemia, ainda somos incapazes de conseguir conter algo tão pequeno mas tão voraz, capaz de dizimar centenas, porque ainda temos pessoas que vivem em ignorancia, por não se vacinarem e ainda por cima, colocar a vida do outro em risco, por ideologias tolas, descabidas da realidade. Se toda a humanidade se vacinasse, teríamos um controle melhor da situação geral, novas cepas surgiriam sim, só que bem mais controláveis. Precisamos de 2 anos para entender que ainda há muito o que ser mudado e aprendido. A fé ainda nos move, acompanhado da esperança de que o mundo possa evoluir antes de acabar em completo caos. Que a ignorancia e a intolerância não vençam o amor, a humanidade e a ciência. Senão, aí sim, estaremos caminhando em direção ao fim.

  2. Edílson do Carmo

    Show, a forma e a naturalidade das palavras por vc Márcio elaboradas, com inteligência e destreza diante de um fato histórico complexo e doloroso , que no deixa lições, aprendizados e momentos de superação, solidariedade, abs Parabéns Márcio

    1. Erick

      Ótimo texto, Márcio. Traduz com exatidão o triste momento que atravessamos. Oxalá tenhamos todos doravante mais empatia e consciência de nossa responsabilidade, inclusive com os demais seres vivos do planeta, para convivermos todos, se não na paz plena, ao menos de maneira mais harmoniosa e menos agressiva.

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